O Porcellino de Florença e a fábula de Hans Christian Andersen
Conecte-se conosco

Literatura

O Porcellino de Florença e a fábula de Hans Christian Andersen

A curiosa história de uma despretensiosa estátua que virou lenda e inspirou conto do autor de O Patinho Feio.

Publicado

em

Foto: Marcelo Spalding

As redes sociais estão cheias de memes de turismo, como fazer pose segurando a Torre de Pisa, agarrar as bolas do touro de Nova York ou os seios de Julieta em Verona (este de péssimo gosto, aliás). Mas em Florença tem uma tradição de séculos que inclusive rendeu um conto de Hans Christian Andersen: acariciar o focinho do Porcellino, um porco de bronze que fica na praça Mercato Nuovo. A escultura chega a ter uma cor diferente no focinho de tão desgastada pelas mãos dos turistas, que se aglomeram e fazem fila em frente à estátua.

Reza a lenda que acariciar ou esfregar o focinho do porco e deixar uma moeda na sua boca traz sorte e fortuna (desde que caia no vão da grade de escoamento da fonte). Alguns também aproveitam para fazer um pedido.

Nada contra superstições nem mesmo contra os memes, o problema é quando o viajante se contenta com esta superficialidade e deixa de perceber coisas como a placa comemorativa aos 200 anos do nascimento de Hans Christian Andersen a alguns passos do porquinho de bronze. Diz assim, em tradução livre: “Aqui teve origem o conto ‘Il Porcellino, escrito pelo renomado contista dinamarquês Hans Christian Andersen (1805–1875), que amou Florença, onde esteve várias vezes, definindo nossa cidade como ‘Um livro ilustrado inteiro’.”

Fotos: Marcelo Spading

O conto

O conto foi escrito em 1846 e pode ser encontrado em português com o título “O Porco de Bronze” ou “O Porquinho de Metal”. O primeiro parágrafo, aliás, é uma boa descrição do local ainda hoje, embora os turistas tenham tomado o lugar dos mendigos e crianças diante da fonte:

“Na cidade de Florença, não muito longe da Piazza del Granduca, fica uma pequena travessa. Creio que lhe dão o nome de Porta Rosa. Ali, em uma espécie de mercado de verduras, está um porco de bronze, artisticamente trabalhando. Escorre-lhe da boca um fio de água clara e fresca, e o animal, com a idade, foi tomando uma cor-negra. Só o focinho brilha ainda, como se fosse polido, e de fato o é: centenas de crianças e de lazzaroni (mendigos) o seguram com as mãos, enquanto unem a boca ao focinho do animal para beber. E é um quadro realmente belo o que apresenta aquele animal tão talhado, abraçado por um bonito menino seminu, que lhe roça pelo focinho os lábios frescos.”

Na sequência do conto, o pobre menino adormece nas costas da estátua e, durante a noite, o porco ganha vida e o leva pelas ruas de Florença, visitando pontos turísticos, sendo saudado pelo Davi de Michelangelo, vendo os quadros da Galeria Uffizi também ganharem vida, interagindo com os célebres italianos sepultados na Basílica de Santa Croce.

LEIA TAMBÉM: A Alice do Central Park, em Nova York, e outras estátuas pelo Brasil

Assim como nos textos mais famosos de Andersen, como “O Patinho Feio” (1843), “A Pequena Sereia” (1837) e “O Soldadinho de Chumbo” (1838), a fantasia é um recurso para denunciar e refletir sobre a grave situação social da Europa do século XIX. O menino que interage com a estátua em “O Porco de Bronze”, verdadeiro protagonista do texto, está passando fome e encontra na água que verte do Porcellino e nos restos de verdura jogados no chão ao redor da estátua seu único sustento. Ao voltar para casa sem conseguir dinheiro, depois da aventura idílica com o porco, é agredido e ameaçado pela mãe, o que o faz abandonar a casa. A temática, aliás, lembra a “A Pequena Vendedora de Fósforos” (1845), em que a dura realidade só é suportável pela fantasia do sonho.

A história do Porcellino

Para além do conto, vale conhecer também a história da estátua em si. A figura da fonte foi esculpida e fundida pelo mestre barroco Pietro Tacca, pouco antes de 1634. Ele se baseou em uma cópia italiana em mármore de uma escultura helenística datada provavelmente dos séculos I a.C. a I d.C., que na época pertencia às coleções do Grão-Ducado e hoje está exposta na seção de arte clássica da Galeria Uffizi. O original, encontrado em Roma e levado para Florença em meados do século XVI pelos Médici, foi desde sua redescoberta associado ao Javali da Calidônia, figura do mito grego.

Foto: Marcelo Spalding

Mais interessante, porém, é que a estátua hoje exposta não é a esculpida por Pietro Tacca. Esta foi retirada do local em 2008 para conservação e está agora preservada no Museu Bardini, também em Florença. A estátua atual na rua é uma réplica feita para substituir o original e manter a tradição turística viva — especialmente o gesto de acariciar o focinho do javali para dar sorte.

Foto: Marcelo Spalding

Vale lembrar que o Davi de Michelângelo que está hoje exposto ao ar livre na Piazza della Signoria, em frente ao Palazzo Vecchio, também é uma cópia. O original esculpido por Michelângelo entre 1501 e 1504, em mármore de Carrara, ficou no local por quase 370 anos. Em 1873, o Davi original foi transferido para a Galleria dell’Accademia de Florença, onde está até hoje, protegido das intempéries e com condições adequadas de conservação. A cópia que vemos atualmente na praça foi instalada em 1910, ocupando o lugar original da escultura.

Siga o @portaluaiturismo no Instagram e no TikTok @uai.turismo

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.