Inovação
Um dedo de prosa sobre turismo criativo
Entrevista com Caroline Couret, uma das referências sobre o tema, daquelas pessoas que provoca inspiração diariamente, pois além de todos os projetos e atividades, ainda é generosa para compartilhar conhecimento, vivências e desafios.
A primeira vez que ouvi sobre turismo criativo, foi por volta de 2012, quando iniciei os estudos sobre economia criativa, e me deparei com o termo. Desde então, o assunto me encanta cada vez mais, e confirma o primeiro pensamento que tive à época: esse é um caminho realmente interessante para o turismo, esse é um caminho com propósito.
Em 2013, Porto Alegre então realiza a 1ª Conferência Brasileira de Turismo Criativo, e lá estava eu, por uma oportunidade de trabalho, participando do evento e tendo a felicidade de ouvir, pela primeira vez, a Caroline Couret.
Uma das minhas referências sobre o tema, com certeza, daquelas que nos inspira diariamente e, mesmo com todo conhecimento, projetos e atividades, ainda é generosa para compartilhar conhecimento, vivências e desafios.
Caroline, a francesa, radicada em Barcelona, mais latina que conheço, é graduada em Políticas Culturais (DESS, University of Burgundy) e Comunicação (University of Barcelona), especialista e consultora em turismo criativo. Fundadora e diretora da Creative Tourism Network®️ – e do Programa Barcelona Creative Tourism
Consultora para órgãos internacionais como ONU Turismo, UNESCO, UNOSSC, União Euopeia, em especial para o Capital Europeia de Turismo Inteligente e instrutora em turismo criativo para o UNWTO Academy. Em 2023, foi designada pela GIZ e Ministério do Turismo da Tunísia para ordenar a Rota Culinária da Tunísia.
Membro do Institute of Gastronomy, Culture, Art and Tourism (IGCAT) e jurada do Concurso Jovens Chefs Europeus, presidido por Joan Roca. Ministra palestras, conferências e treinamentos em todo o mundo e publica diversos artigos em diferentes idiomas.
Gestora de projetos estratégicos para instituições públicas em diferentes países, possui também experiências diferenciadas internacionalmente, entre elas: La Casa de Velázquez (Madrid), Festival de Cinema de Cannes (Françe), e Festival International de Louisiana (USA), Alliance Française de Guadalajara (Mexico), Tangier (Morocco), entre outros.
1- Como você conceitua turismo criativo e quais são as diferenças entre ele e o turismo tradicional?
Esta pergunta é essencial. Na verdade, talvez porque o conceito de criatividade seja muito amplo e atrativo, nos últimos anos o turismo criativo tem sido relacionado com, eu diria, “qualquer” forma de turismo “alternativo”, que difere minimamente do turismo tradicional. Para evitar possíveis confusões ou mesmo intrusões, nossa referência sempre foi a definição oficial do conceito, formulada por seus criadores – os professores Greg Richards e Crispin Raymond, em 2000. (*). Eles enfatizaram uma forma de turismo mais interativa, em que os viajantes podem compreender as culturas locais, participando em experiências criativas com os residentes. Por exemplo, é um viajante que faz aulas de culinária em todo o mundo, uma família que dá um workshop de mosaicos ao estilo de Antoni Gaudí em Barcelona, um grupo de amigos que cria cosméticos naturais durante um retiro na Bulgária, para citar alguns.
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Assim, os elementos diferenciadores do que ainda é considerado turismo “tradicional” seriam a interatividade entre os viajantes e a população local, e a autenticidade das experiências criativas, baseadas na transmissão do patrimônio cultural imaterial local. A realidade tem nos mostrado que, apesar da rápida evolução deste turismo e da sua adaptação a ambientes culturais muito diferentes, estes critérios continuam a ser válidos e os mais valorizados pelos próprios turistas.
2- Como o conceito vem se desenvolvendo e como sua aceitação junto ao mercado turístico?
Sendo um turismo baseado nos valores humanos e na autenticidade, a sua evolução não poderia ser outra que não “orgânica”, refletindo as mudanças da própria sociedade. Resumindo bastante, diria que o turismo criativo nasceu da crise de um modelo “fordista” e padronizado, e o seu desenvolvimento foi acelerado através da capacitação do turista, através, entre outros fatores, da utilização de novas tecnologias.
Apesar da oferta cultural do destino ainda ser uma das principais motivações dos turistas, percebemos que a transição de consumidor para prosumidor (um consumidor com perfil mais pró-ativo) transformou os em viajantes, que passam a ter uma demanda por experiências “únicas”. Neste sentido, vale destacar como esta busca tem levado a uma hiper segmentação do setor do turismo criativo.
Embora no início o turista criativo fosse visto como um viajante romântico e solitário, no puro estilo dos seguidores do Grand Tour, que passavam dias pintando as paisagens da Toscana, hoje seria impossível fazer um retrato padrão do turista criativo. Podemos até nos felicitar por sermos cada vez mais uma forma de viajar, que seduz as mais diversas gerações, tanto millenials como sêniors, tanto os solteiros como as famílias e grupos de amigos e colegas de trabalho e, de uma forma mais geral, os amantes da dança, da música, do artesanato, da pintura, da culinária, etc.
Esta evolução gerou perturbações que a indústria do turismo não esperava! Confortavelmente instalados num modelo “top-down” durante décadas, os “atores” do setor turístico global não perceberam inicialmente o peso que esta procura, ainda minoritária, mas muito específica, poderia ter. A pandemia COVID marcou um ponto de virada, evidenciando uma mudança no valor dos viajantes, para o que é mais próximo, manual e humano, bem como a possibilidade de manter uma atividade lucrativa com pequenos grupos. Da Creative Tourism Network®️ ajudamos a converter o seu patrimônio imaterial numa nova oferta de elevado valor agregado, ou seja, que muda de escala, sem perder qualidade.
3- Podemos dizer que turismo criativo é uma forma de inovação para o turismo em geral? Porque?
Sem dúvida! Na verdade, continua a surpreender o fato de exigências que, à primeira vista, poderiam parecer tão inusitadas, terem gerado um novo paradigma para todo o setor, e em nível planetário! A especificidade destas exigências e a força do novo modelo “bottom-up” forçaram a indústria global do turismo a repensar o seu modelo. Têm que integrar uma visão mais inclusiva, contando com novos “parceiros”, que batizei de “Dream Makers – Produtores de Sonhos”, que são as comunidades, os artistas, os artesãos, etc., que afinal são quem tornam o projeto possível: o sonho dos viajantes, partilhando com eles os seus conhecimentos ancestrais, as suas tradições e claro, parte do seu cotidiano. Portanto, a inovação destaca-se sobretudo ao nível dos recursos humanos, porque a criação destes novos ecossistemas exige a formação de todos os atores e a incorporação de novos intermediários. A Creative Tourism Network também colabora nesse sentido.
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4- Como você avalia o desenvolvimento do turismo criativo nos destino? Existem diferentes formas de trabalhar com a temática em grandes cidades, médias e pequenas?
Não vou dizer que não existam diferenças, mas embora possa surpreendê-la, não existem tantas como pensamos! Na verdade, sempre nos surpreende o fato de, entre os membros da Creative Tourism Network®, megalópoles como Medellín poderem trocar boas práticas e estabelecer contatos com cidades do sul de França, ilhas remotas ou destinos de “sol e praia”. Independentemente do respectivo DNA, todas concordam com a visão disruptiva, inclusiva e social com que gerem o destino, bem como com a adesão das suas populações ao projeto. Embora a metodologia tenha que ser adaptada para acompanhar os atores locais na cocriação de experiências e de uma narrativa comunitária, é interessante observar como os mesmos problemas se repetem em contextos tão diferentes, em torno da diversificação da oferta, da inclusão, e de alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Ou seja, muda-se a escala territorial, mas o fato de apostar num turismo centrado no “humano”, faz com que o mais local se torne universal.
5- Pela sua experiência, o desenvolvimento do turismo criativo muda entre os continentes? Por exemplo, os desafios em desenvolver turismo criativo na Europa são os mesmos para a Ásia, África, América Latina?
Independentemente das suas características comuns, creio que a maior diferença está marcada pela “História” do destino, que pode influenciar o grau de maturidade do seu turismo em geral, ou sobretudo, a confiança e autoestima dos seus habitantes. Por isso, trabalhamos muito esta vertente na formação e mentoria que proporcionamos aos atores locais, porque normalmente não têm consciência do imenso valor que o seu conhecimento pode trazer para a experiência de viagem e, por consequência, para o destino. Mas no fundo, são nuances relacionadas com as respectivas formas de relacionamento, enquanto se criam subcomunidades de turismo criativo em cada continente!
6- Turismo é feito por uma cadeia de atores, empreendedores, entidades de representação como ONG’ e gestores públicos. Como cada um deles pode se envolver em um plano para o desenvolvimento de turismo criativo no seu destino?
O sucesso do turismo criativo reside no seu modelo de governança. Embora represente um desafio – por ser totalmente inédito e disruptivo – a diversidade dos atores envolvidos deverá gerar um círculo virtuoso para o território. Com efeito, já não se trata de um modelo bottom-up, mas sim de uma visão holística do destino, em que cada ator não só é essencial em si mesmo, mas deve gerar sinergias com outros atores de setores transversais. Por exemplo, o agente de viagens ou o proprietário de uma casa rural terá que cocriar com artistas e artesãos para diversificar a sua oferta, prolongar a sua estadia, etc. Devem encontrar o seu elemento diferenciador na criatividade das suas ofertas. Assim, deixarão de ser concorrentes e passarão a ser aliados, colocando a sua complementaridade ao serviço do destino. Em uma escala superior, os próprios destinos, em caráter global, já não são concorrentes, mas são complemento de outros destinos certificados Creative Friendly. A cadeia de valor forma-se assim quase naturalmente, orientada por um enquadramento ético e pela viabilidade econômica gerada em cada escala.
7- Você está a frente da Creative Tourism Network – Rede de Turismo Criativo pode comentar como é o trabalho da instituição e como um destino ou território pode participar das suas iniciativas?
Diria que somos precisamente a peça do quebra-cabeças que ajuda a aproximar e criar sinergias entre atores e destinos tão diferentes! O nosso papel é sobretudo identificar as potencialidades de cada território e começar a trabalhar com as comunidades num processo que vai desde o trabalho de autoestima e formação profissional, até à criação e promoção dos seus projetos empreendedores, e claro, (re) criando um DNA comum ao território. É um trabalho muito gratificante, em que colocamos a expertise, mas sobretudo a empatia, no centro das ações comuns.
Outras das nossas missões estão focadas na promoção internacional de destinos que recebem a certificação Creative Friendly.
Investimos também no desenvolvimento do turismo criativo através de projetos acadêmicos, organização de conferências, prêmios, etc.
Pretendemos assim proporcionar um ponto de convergência para atores de todos os perfis, relacionados ou interessados no turismo criativo. Na verdade, recebemos solicitações de destinos dos mais diversos, que se sentem identificados com o que é quase uma “filosofia empresarial!”
8- O tema turismo criativo está cada vez mais presente no Brasil. Aqui, é também referenciado como turismo de experiência. Como você percebe as oportunidades que o turismo criativo pode agregar ao turismo brasileiro?
O Brasil tem tudo! …e ainda mais se nos referirmos aos valores humanos, à cultura, à criatividade, à diversidade, à beleza e à experiência em setores pioneiros como a economia e o turismo criativo. Além da riqueza cultural e paisagística, viajantes de todo o mundo já escolhem o Brasil pela gentileza e alegria de seu povo. O turismo criativo proporciona então mais uma oportunidade para atrair novos perfis, prolongar as estadias, repartí-las ao longo do ano, e diversificá-las, criando novas oportunidades para territórios que não tinham anterior vocação turística, e assim, gerar um impacto econômico e social muito positivo, para o país como um todo. Na verdade, a complementaridade dos ambientes naturais e culturais significa que os destinos brasileiros podem criar um efeito multiplicador trabalhando juntos e tornar o Brasil um líder para esses setores virtuosos.
Agradeço mais uma vez a disponibilidade da Caroline em trazer sua experiência. As perspectivas são muito positivas e promissoras, em acordo com o que foi apresentado pela entrevistada, a matéria-prima nós temos.
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