Literatura
Mafalda e Pinóquio reinam nas terras de Borges e Calvino
Presença das personagens infantis em souvenirs e como ponto turístico na Argentina e na Itália nos faz refletir sobre o que da literatura é mais perene.

Quem gosta de literatura, especialmente quem aprecia o gênero conto, certamente já leu Jorge Luis Borges. Dono de um estilo muito próprio que enreda conto e ensaio, ficção e realidade, narrativa e dissertação, é autor de contos memoráveis como O Aleph (1945), A Biblioteca de Babel (1941), O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (1941) e O Sul (1953). Considerado o maior escritor argentino, é nome importante do pós-modernismo e do realismo mágico, tendo influenciado muitos autores importantes das gerações seguintes.
Era natural, então, que na minha viagem a Buenos Aires procurasse algum local para conhecer melhor a obra e o autor, assim como em Lisboa visitei os ótimos Museu Fernando Pessoa e Fundação José Saramago. Descobri que havia um Centro Cultural Borges na Galerias Pacífico, e fui preparado para gravar um vídeo para meu canal no YouTube. Mas a parte do Borges em si renderia no máximo um short.
O centro cultural é enorme, com várias salas e exposições, além de ser gratuito. Mas a exposição permanente sobre o escritor argentino é pequena e faz mais uma releitura visual de seus contos do que enaltece o escritor em si. Em nada lembra os espaços em homenagem a Saramago e Fernando Pessoa em Portugal.
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Mafalda
Por outro lado, há uma figurinha carimbada nos principais pontos turísticos de Buenos Aires, também ligada às letras: Mafalda. A protagonista das tirinhas de Quino tem uma estátua concorridíssima em San Telmo, outras tantas espalhadas pela cidade, lojas inteiras com produtos ligados a ela, estante exclusiva na El Ateneo, placa em homenagem a Quino no local em que viveu, exposições, etc. Sem contar que em toda loja de suvenir se vê a Mafalda: com a camisa do Boca no Caminito, dançando tango, com o obelisco, estampada em canecas, ímãs de geladeira, lápis.
A história de como a Mafalda surgiu é fascinante. Quino foi contratado pra fazer umas tirinhas para a empresa Mansfield, em 1963. Os trabalhos seriam publicados no Clarín, mas o jornal percebeu a propaganda disfarçada e se negou a publicá-las. Acabaram saindo no Primera Plana, uma revista semanal de grande circulação na Argentina. Curioso é que mesmo com tanto sucesso, Quino optou por interromper a produção das tiras em 1973, evitando que elas se tornassem repetitivas e também com medo da censura e da repressão do governo ditatorial.
Para se ter uma ideia da importância da personagem para a cultura argentina contemporânea, em novembro de 2024 a personagem Mafalda visitou a sede das Nações Unidas em Nova York, nos Estados Unidos, num ato simbólico sobre paz e intercâmbio de culturas, como parte da comemoração dos seus 60 anos.
Pinóquio na Itália
Na Itália, terra de grandes escritores como Umberto Eco e Ítalo Calvino, também chama a atenção a onipresença do Pinóquio, de Carlo Collodi, especialmente se comparada às quase nulas alusões a nomes como Eco e Calvino. Afora peças e musicais em cartaz sobre Pinóquio, há um parque dedicado ao personagem em Pescia, uma belíssima loja de brinquedos de madeira e objetos com alusão ao Pinóquio em Roma e também souvenirs de todo tipo, assim como ocorre com Mafalda.
Muitos dirão que essa onipresença de personagens infantis e apagamento de autores clássicos e canônicos reflete uma sociedade infantilizada, fruto da indústria cultural e da sociedade do espetáculo. Outros verão com otimismo o fato de tanto Pinóquio quanto Mafalda serem questionadores, contestadores, espíritos à frente do seu tempo capazes de mobilizar não apenas crianças ou adolescentes.
Talvez a resposta esteja na força dos personagens, maior que a de seus autores. Embora Borges, Eco e Calvino tenham uma obra valiosa, os dois últimos com novelas e romances fundamentais para a história da literatura, não são lembrados por algum personagem em especial. E são os personagens que permanecem no imaginário popular, mais ainda quando eles nos foram apresentados na infância, mas continuam a significar algo quando chegamos na vida adulta.
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